Quando um se faz presente, o outro se manifesta. Reflexões de Antagônicos e complementares.
Conheci Clarice (Linspector) apenas pelas suas palavras. Mas ela me desnuda de tal forma que tenho a sensação de estar com uma amiga íntima ou com uma terapeuta de anos (não tenho uma, mas acho que esses profissionais sempre conhecem uma parte mais profunda de seus pacientes).
Em um de seus livros ela “disse” pra mim que “as pessoas que se preocupam demais com a ordem externa é porque internamente estão em desordem e precisam de um contraponto que lhes sirva de segurança”. Parecia uma crítica ao uso de uma máscara. Concordei, me identifiquei. Mas, descobri que pra mim, era mais.
É normal “me dar a louca” e sair organizando tudo. É um furacão só, passando por armários, gavetas, cômodos… Parece contraditório para quem não tem a organização em seu DNA, mas o que começou com uma prática para disciplina, se mostrou, na verdade, um instrumento de conforto, fuga e/ou uma maneira de fazer frente a momentos em que o sentimento de impotência diante de tantas coisas que ocorrem mundo afora me toma e me apavora.
Foi em um dos momentos mais difíceis da minha vida, aqueles em que tudo de ruim parece acontecer ao mesmotempo-junto-misturado, que esse recurso me serviu de acalanto. Havia um pouco de misticismo, fruto das buscas que fiz por algo além. Encontrei quem acredita que a organização do armário de mantimentos representa a organização financeira, por exemplo. Mas, na prática, a ação de por em ordem alguma coisa, ainda que aparentemente banal, me supria: joguei muita coisa fora, doei outras, criei caixas, latas, etiquetas. Fui arrumando tudo que era possível e acalmando a alma.
Foi nesse momento também que encontrei as palavras do Gui Temperani, criador dos restaurantes Macaxeira e Uru. Na época, nem sabia que era dele. Mas o texto também traduziu o meu momento. Fiz questão de falar com ele, que prontamente autorizou a reprodução: “Decidi mudar. Tirei meus desejos do papel e fui à luta. Por onde eu comecei? Lavei a louça. Comecei a arrumar meu armário, minhas roupas, arrumar a casa onde eu moro, o lugar onde eu deposito meus costumes, acordar cedo (essa ainda é um desafio pra mim!), meu celular. Não dá pra ter uma vida organizada e próspera com a louça suja”, diz o primeiro trecho. O texto continua com o registro de uma fase de superação, com algumas iniciativas que ainda não consegui, mas que servem de inspiração para o que busco e admiro:
“Depois cuidei do meu corpo: a casa onde abriga todos os meus pensamentos mais insanos e desejos mais profundos. Comecei a fazer meditação, academia, reeducação alimentar, comecei a ler, fiz cursos, comecei olhar e ver só o lado bom das coisas, parei de reclamar, comecei a dar ao meu corpo o movimento que ele pedia. Aproveitei o dia, dei pra mim mesmo aquilo que eu estava ensaiando pra me dar há muito tempo. Ensaiando porque todo domingo eu dizia: ‘Amanhã eu começo’, mas o amanhã sempre chegava trazendo com ele o hoje, que sempre deixava pra amanhã. De uma forma meio que mágica, comecei a me sentir presenteado. Presenteado por tudo aquilo que eu já tinha. Que sempre esteve na palma da minha mão. Presenteado porque tomei consciência de tudo que eu conquistei até aqui, por tudo aquilo que sempre fez parte da minha vida e eu tratava de maneira -normal-, hoje eu vi de forma diferente. Parece que Deus me disse: “Filho, olha pra sua vida, olha que perfeita que ela é.” E é. E sempre foi. Mesmo no perrengue, nos dias difíceis, no desconforto ao ver pessoas conhecidas desdenhando do meu sonho e rejeitando meu jeito de ser e pensar. Sempre foi tudo perfeito. Tudo que deu errado se encaixou mais à frente e tudo que ainda não acho que esteja certo, no fundo, eu sei que de uma maneira ou outra, está. Sempre esteve. Tudo no seu tempo, cada experiência um aprendizado, cada conquista uma piscada de olho pra Deus, em cada fracasso uma chance a mais de ter fé…”.
Fracasso, vitória. Luz e treva. Ordem e desordem. Um antagonismo aparente. No fundo, complementos intrínsecos à própria complexidade do ser.
A crise está aí, super difícil para muita gente, sob diferentes aspectos e circunstâncias. Mas tenho tentado focar minha atenção no que há de bom em nós. Nas pessoas oferecendo ajuda umas para as outras, na minha avó com mais de 80 anos, isolada, costurando máscaras para quem quer e precisa, na minha tia Juraci e na minha prima Sofia, superando o medo e saindo de casa todos os dias para ficarem frente a frente com o perigo, com a morte, com a dor, da minha mãe que superou o momento de tédio, saudade e ansiedade, dançando sozinha na sala de sua casa, nas empresas que se mobilizaram em doações em dinheiro para pesquisas, doações em produtos para hospitais, nos empresários, compartilhando seus conhecimentos e experiências e em busca de alternativas para que os pequenos sobrevivam. Apesar dos pesares, se isso for uma prova, creio que verão, como diz o ruivão (Nando Reis), que “o mundo é bão, Sebatião”.
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